AS PROMOÇÔES
Ainda antes de amanhecer já vivíamos uma azáfama nervosa no quartel de Porto Brandão. Estávamos a 9 de Janeiro de 1965, um sábado em que o Sol brilhava, e dentro de poucas horas embarcaríamos no navio “Vera Cruz”, rumo a Angola.
Do Porto Brandão até ao cais da Rocha Conde de Óbidos, onde estava ancorado aquele navio, a viagem fez-se a bordo de um ferry-boat especialmente fretado para o efeito.
E se evoco hoje a data do embarque é, sobretudo, para relembrar uma breve cerimónia que teve lugar durante a curta viagem entre as duas margens do Tejo.
De acordo com a legislação então vigente, na data do embarque para as comissões de serviço no Ultramar, os aspirantes a oficiais milicianos, os cabos milicianos e alguns soldados eram promovidos a alferes, furriéis e cabos, respectivamente. A maior parte dos militares abrangidos por estas promoções limitou-se a colocar os galões ou as divisas do novo posto nas respectivas platinas nessa manhã (é certo que alguns já as haviam exibido na véspera à noite, durante a despedida de Lisboa). A excepção verificou-se com os militares da Companhia de Artilharia (CART) 738.
O capitão Rubi Marques, comandante da referida Companhia, determinara que o "cerimonial" das promoções teria lugar a bordo do ferry-boat, obedecendo a um ritual próprio.
(Permito-me abrir aqui um parêntese para tentar dar pistas para as motivações daquela determinação.
Dos quatro comandantes que a CART 738 teve não foi com o capitão Rubi Marques que tive uma relação de proximidade pessoal. Aliás, creio que ninguém na Companhia a teve; cada um sabia o seu lugar na hierarquia e lá se mantinha. Todavia, e sem prejuízo dos méritos dos comandantes que lhe sucederam, com os quais tive, à excepção do último, um excelente relacionamento, foi ele o comandante por quem tive o maior respeito e admiração, não só pela forma como ele soube organizar a Companhia, mas também pelo modo como impôs e fez cumprir regras comportamentais a todos, sem excepção. Por outro lado, ao temperar o cumprimento dessas regras com um acentuado sentido humanista, conseguiu obter uma sã convivência entre os 163 militares da unidade, sem a ocorrência de atritos relevantes.
Uma das peculiaridades do capitão Rubi Marques era a sua propensão para o cumprimento de certas formalidades - que em Lucunga incluíam um dia-a-dia com algumas normas raramente observadas noutras unidades.)
Posto este interregno, recomeço a narrativa.
Iniciou-se então a "cerimónia" das promoções com uma formatura geral da Companhia no amplo espaço do ferry-boat habitualmente reservado ao transporte de automóveis.
Perante os (sor)risos trocistas dos restantes militares do Batalhão, o capitão Rubi Marques colocou nas platinas da farda dos, até então, aspirantes a oficial os galões correspondentes ao posto de alferes; por sua vez, os novos alferes colocaram, aos cabos milicianos dos respectivos pelotões, as divisas de furriel; a estes coube a imposição das divisas aos novos primeiros-cabos.
Não nego que, na altura, sentimos algum desconforto. Não pelo "cerimonial" em si, mas sobretudo pelas piadas de que sabíamos ir ser alvo (e fomos) a seguir.
Mais tarde percebi que estes rituais, eram também uma forma de nos unir e de nos fazer sentir diferentes. E a troça e o gozo já há muito que tinham passado para trás das costas.
Quando, em Janeiro de 1966, o capitão Rubi Marques deixou o comando da Companhia, por ter sido promovido ao posto de major, coube-me comandar a secção que o escoltou até ao Aeródromo do Tôto. E aí, em plena pista, também não escapei ao ritual: mandei formar e soltar o grito que constituía a divisa da Companhia, em sua honra.
Acho que no último abraço lhe vi um brilhozinho especial nos olhos.
Carlos Fonseca
CART 738"