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quarta-feira, 30 de junho de 2010

In Memoriam --- 09 - João Francisco Miranda Dias


Conheci o Miranda Dias em 1958. Tínhamos 16 anos e disputávamos, representando clubes diferentes, o Campeonato de Lisboa de Andebol, na categoria de Juniores. Fomo-nos encontrando nos anos seguintes, quando os nossos clubes jogavam entre si, sem no entanto termos estabelecido um relacionamento especial, para além dos cumprimentos habituais no final de cada jogo.
Quis o acaso que voltássemos a encontrar-nos em Setembro de 1964, no RAL 1 (Regimento de Artilharia Ligeira nº 1), em Lisboa, aquando da formação do Batalhão que dá título a este blogue, acabando por integrar a CArt 738. Ele no quarto pelotão, eu no primeiro.
Começava aí uma amizade que, apesar de termos estado muitos anos sem nos encontrarmos, durou até à sua morte em 1994 (se a memória não me atraiçoa).
Em Lucunga ficámos alojados na mesma pequena moradia de três quartos, ocupada por sete furriéis-milicianos, tendo os serões de conversa na varanda conduzido a um conhecimento mais aprofundado e à revelação de vários gostos em comum.
Um deles o Andebol, que levou a que, conjuntamente com o alferes-miliciano Fagundes, também ele praticante da modalidade, viéssemos a “construir” um campo de Andebol, onde disputávamos partidas com outros camaradas a quem pegámos o gosto.
Tínhamos uma outra afinidade, que envolve uma “estória” de malandrice, que vou tentar resumir.
Três dos moradores da nossa casa – eu, o Miranda e o Mourão, a que se juntavam habitualmente os furriéis Vaz, Morais Soares e Almeida – quando íamos em serviço (ou em passeio se estávamos de folga e nos apetecia um almoço diferente, no hotel do Adão, no Toto), comprávamos camarão no Bembe, que depois comíamos, acompanhado por cerveja ou vinho verde.
Acontecia que só eu e o Miranda Dias gostávamos das cabeças do camarão. Os outros tiravam a cabeça que ia para o recipiente das cascas e só comiam o rabo. Depois da primeira experiência, chegámos à conclusão de que, enquanto comíamos a cabeça, os outros comiam um ou dois camarões a mais. Resolvemos, então, alterar o procedimento. Íamos comendo os camarões e colocávamos as cabeças num prato para as comermos no fim. A malandrice consistia no facto de deixarmos um bocado da carne do rabo agarrado à cabeça, acabando nós por comer mais camarão.

Depois do regresso nenhum de nós voltou a jogar Andebol, e estivemos mais de 20 anos sem notícias um do outro.
Até ao dia em que, num dos almoços realizados na Ponte da Asseca, numa daquelas conversas em que falamos dos camaradas de quem não temos notícias, veio à baila o Miranda Dias, e alguém disse que tinha ouvido dizer que ele estava doente, mas que não sabia pormenores, e que ninguém sabia onde morava.
Foi fácil encontrá-lo: bastou ir à lista telefónica de Lisboa. Liguei-lhe e ele confirmou que se encontrava doente há alguns anos. Uma doença degenerativa - esclerose de placas - tinha-o debilitado progressivamente, “atirando-o” para uma cadeira de rodas.
A partir dessa altura e até a morte o levar, três anos depois, passei a visitá-lo pelo menos dois sábados por mês. No ano seguinte ao nosso reencontro acompanhou-me ao almoço de confraternização do Batalhão, onde foi acarinhado por todos, tendo-me dito mais tarde que tinha sido das maiores alegrias que tinha tido nos últimos anos.
Nas conversas desses últimos anos lamentámos o tempo que, sem qualquer explicação, deixámos ir passando sem contactos. Como ele costumava dizer, éramos novos e pensávamos que o Mundo era nosso e que tínhamos uma vida inteira à nossa frente.
Afinal, nem éramos donos do Mundo, nem a “vida inteira” era assim tão longa.
Infelizmente, no seu caso, não só não foi longa, mas foi, também, injustamente cruel.
Carlos Fonseca
CArt 738

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