Troço de floresta, junto a um curso de água
Como já tenho referido noutras oportunidades, cheguei ao Tôto em Março de 1965, cerca de dois meses após a chegada da minha CArt 739. Uma das consequências deste atraso foi o facto de não ter feito sobreposição com a tropa que lá rendemos.
Era chamado de "sobreposição" o curto espaço de tempo que demorava a rendição de uma unidade militar por outra, durante o qual, se entregava à recém-chegada diverso material - armamento pesado, viaturas, equipamento sanitário, e de alojamento, etc. - e, em teoria, se procuraria transmitir a experiência adquirida de modo a evitar a repetição de alguns erros, nomeadamente, aqueles mais funestos. Efectuavam-se algumas operações ao nível de dois Pelotões, um "velho" e outro "maçarico".
Rio Kuango - Enchendo cantis
Da Esq para Dir: SoldAt Varandas, 1º.CabMecArmLig "o Braga", SoldAt Freitas(enchendo o cantil), SoldAt Mendes "o Queijo", FurMilInf Mouga, 1º.CabApMet "?", SoldAt Horta, SoldAt Teixeira "o Arouca", SoldApMet Manuel M Santos "o Bombeiro", o autor do blogue e SoldAt Leite.
Chegado, como disse, mais tarde, não passei por esta fase e, tanto quanto eu sei, o meu próprio Pelotão, em virtude da minha ausência, não acompanhou, também, essa actividade, sendo, antes, encarregado de tarefas menos operacionais, digamos assim, tais como a recolha da água e da lenha. Com a minha chegada, e integrando quase imediatamente a escala de operações, tive que aprender, por minha conta, não podendo, sequer, contar com grande experiência pela parte dos meus comandados.
Noutros postais venho já referindo essa progressiva aquisição de conhecimentos. Um, dos mais importantes, era, inequivocamente, a obtenção da percepção de existência de água corrente capaz de ser bebida, num terreno completamente desconhecido como era a AIL(1) que acabáramos de receber. Com o tempo, acabei por constatar que nos vales florestados existia quase sempre um curso de água, mais ou menos abundante, embora, às vezes, pudesse não passar de um charco que nos obrigava ao ritual das pastilhas e da espera. Deste modo, sempre que nomadizávamos, saíamos, volta e meia, do trilho que percorríamos e descíamos ao vale mais próximo em busca do precioso líquido. Raras vez me enganei.
Rio Kuango - Descanso junto ao curso de água
2º.SargArt Fernando Santa e o autor do blogue. Não identifico o militar que está de costas.
Mas, uma vez enganei-me mesmo e, chegados ao fundo do vale nada encontrámos. Voltámos ao trilho, começando já a sentir as dificuldades da sêde, e dirigímo-nos para um outro vale. E, como se aproximava a noite, ordenei à Secção que seguia à frente que apressasse o passo de maneira a chegarmos, com luz diurna bastante, àquele destino. Atingimos o cimo da colina já próximo do lusco-fusco. O pessoal estava sedento, valendo, aos mais aflitos, o enfermeiro Manuel que era o único com um bom cantil de água(2), Uma das Secções nem sequer parou, limitando-se a recolher os cantis de toda a gente e a seguir, encosta abaixo, a toda a brida, enquanto as restantes montavam o "quadrado"(3) que adoptara como forma de bivacar em pontos altos.
Foi com grande ansiedade que aguardámos o regresso dos camaradas da água. Aquele tempo de espera pareceu-nos uma eternidade! A páginas tantas, já noite feita, ouvimos o barulho característico dos passos que só podiam ser da Secção a regressar, logo renascendo toda a vivacidade daquela tropa até então entorpecida pelo cansaço e pela sêde.
Rio Kuango - FurMilInf João Mouga
Foi, porém, muito grande a desilusão! Comunicou-me o comandante da Secção que não existia água naquele vale! Num mesmo dia, enganára-me duas vezes relativamente ao mesmo assunto!
Perante a resposta, tivemos que nos submeter a uma noite de sêde verdadeiramente horrivel - um dos que se descontrolou foi, precisamente, o comandante da Secção que tinha partido em busca da água - contando, apenas com o cantil do Manuel que, quase à força, pouco mais permitia do que molhar os lábios.
Ainda antes da aurora acordei toda a gente - poucos tinham sido os que dormiram, com a boca seca e a língua meio-inchada - de modo a arrancar mal houvesse alguma visibilidade. Qualquer coisa me dizia que deveria haver água naquele local e ordenei a descida pelo caminho aberto pela Secção que se deslocara no dia anterior. Qual não foi a nossa surpresa quanto, bem lá no funfo, deparámos com um pequeno curso de água que corria, quase diria alegre e cristalino, depois de se ter despenhado de uma pequena cascata.
Depois de saciada a sede e enchidos os cantis, não me furtei a dizer ao comandante da Secção tudo o que pensava da sua atitude de renúncia na procura da tão necessária água. Tudo levava a crer ter desistido ainda a meio da descida. Pela primeira vez - e julgo que pela última - dei uma descompostura a um graduado na frente do pessoal, mas não pude resistir. Não estou arrependido e hoje, fá-lo-ia de novo.
VETERANO
(1) Área de Intervenção Livre.
(2) Constava que o Manuel aguentava muito bem a sede por ter sido pastor na vida civil. Desde que regressámos, nunca mais soube dele.
(3) Uma Secção e Comando, em cada "canto" de um quadrado imaginário.
NOTAS: As fotos que ilustram este postal não estão relacionadas com a situação descrita. Por sinal, estão datadas: dias 17 e 18 de Agosto de 1965.
VALE A PENA LER O COMENTÁRIO REMETIDO PELO CAMARADA SÉRGIO O. SÁ. (aditado às 23H35 de 15.01.2012)