Em meados de Abril de 1965, apresentou-se no posto administrativo de Lucunga um jovem negro que afirmava ser natural daquela localidade. Segundo ele, teria fugido com os pais para Kinshasa em consequência dos massacres de Março de 1961. Resolvera regressar e, sendo cidadão português nascido em Angola, pretendia integrar-se na sociedade angolana.
Enquanto decorriam as necessárias formalidades, ficou alojado nas instalações do posto administrativo, tendo-se tornado uma espécie de hóspede de todos nós. Circulava livremente pela povoação, falava sobre a vida que levava em Kinshasa, tomava parte activa nos nossos jogos de futebol, e ia bebendo as cervejas que um ou outro lhe pagava na cantina.
Deste modo, levávamos à prática a política de Acção Psico-Social, tão cara às autoridades nacionais e, muito particularmente, ao nosso comandante de Batalhão.
De vez em quando, tinham lugar no edifício do posto renhidos jogos de cartas, durante os quais se bebia brandy (já então o Constantino era famoso) e cerveja, conforme os gostos.
No dia 12 de Maio, decorria um desses jogos. Além dos jogadores havia, como de costume, alguns assistentes. Um desses assistentes era o jovem negro recém-apresentado que, não poupando na bebida, começou a apresentar uma loquacidade que surpreendeu os presentes, que lhe foram puxando pela língua, com a ajuda do álcool que ia bebendo.
E qual não é o espanto de todos quando ele começa a dizer que conhecia todos os cantos do “quartel”; sabia onde eram os alojamentos de todos os militares, fossem oficiais, sargentos ou praças e conhecia todas as rotinas da Companhia; finalmente, acabou por dizer que tinha ido a Lucunga para espiar e que tinha chegado a hora de se ir embora.
Dito isto, saiu disparado porta fora em direcção ao campo de futebol e à saída poente da localidade.
De todos os presentes, apenas o comerciante Santos estava armado. Saiu atrás dele, tirou a pistola do coldre e fez dois disparos. Ao segundo disparo o fugitivo parou, no meio do campo, com as mãos no ar.
Conduzido à sala de comando, onde foi sujeito a longo e insistente interrogatório, pouco revelou. Confirmou que tinha sido mandado pela FNLA para recolher informações, e adiantou que fugira porque tinha à sua espera no hospital (situado a algumas dezenas de metros da povoação e parcialmente em ruínas) um grupo da FNLA para o escoltar de volta a Kinshasa, onde apresentaria o seu relatório.
Alguns dias depois, a Rádio Brazzaville confirmaria a estada dos FNLA's no hospital e aproveitaria para fazer a habitual propaganda, acusando-nos de termos praticado as maiores diabruras durante o interrogatório.
Algum tempo depois, já quase recuperado do susto que apanhou ao sentir as balas da pistola do Santos a assobiarem junto à cabeça, foi entregue ao comando do Batalhão, no Vale do Loge.
Meses mais tarde, militares da Companhia que se deslocaram a Carmona, em serviço, encontraram-no. Parece que tinha sido mesmo recuperado e era contínuo na Repartição de Finanças.
Parecia muito contente. Mas estaria mesmo recuperado?
Carlos Fonseca
CArt 738
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