A Companhia era disciplinada e experiente. Gente valente. O médico, o “Toino”, como carinhosamente o tratavam, era um dos pólos do ambiente sadio que reinava entre o pessoal e, entre este e a sanzala, grande parte gente deslocada das zonas afectadas pela acção terrorista. “Machambas” cultivadas, orientadas pelos soldados, e um bairro social de duas dezenas de casas estava pronto a ser entregue aos novos donos.
A popularidade e o respeito pelo “Toino”, a sua competência e jovialidade, travesso e contestatário, “D. Juan” assumido, levar-me-iam a baptizá-lo de “Tonecas”. Não fardava lá muito bem, preferindo as sandálias, calças camufladas, “quico” às três pancadas e uma inseparável garrafa de “cuca” na mão, nas horas de maior calor!
Não saía para o mato: “Capitão, conte comigo, para tudo, dentro do arame farpado. Fora, não; além de tudo, morro de medo! Fique descansado que o “Pastilhas”, furriel Veiga, e os cabos enfermeiros foram por mim preparados para actuarem no caso de feridos”.
Irreverente, espírito aberto, confessou-me que era “do contra”, participara das manifestações estudantis e estivera detido em Oeiras, na Polícia Móvel. Na unidade mobilizadora, mais tarde o tristemente célebre RALIS, conhecera o pessoal da Companhia. Contrariado e embora não concordasse com a guerra, achou que o seu lugar era junto “desta malta”! Não desertou, como o fizeram vários “heróis” de hoje: “Antes de ser do contra, sou médico. Fechei o consultório e abandonei os meus trabalhos de investigação em Benfica. Agrada-me a camaradagem e o espírito de solidariedade. O meu lugar, agora, é aqui. Julgo que tenho feito um trabalho positivo no tratamento e na acção psico-social junto dos nativos. Sou médico em África”.
Era ver, diariamente, a bicha de africanos no Posto de Socorros. Até a Helena, a “Pacaça”, a “amiga” dos militares, se apresentava semanalmente à inspecção: “A Helena é do Estado e não pode pregar doença”, dizia ela.
Acabado o rancho, noite escura e chuvosa, a rádio dava ruídos à mistura com notas de música. Televisão não havia. Conversávamos, enquanto outros jogavam e discutiam. A figura do “Cifra” assumira à porta, como tantas vezes acontecia. Nunca eram boas novas. Uma mensagem, vinda da Companhia do Lucunga, com o médico ausente, o furriel enfermeiro pedia instruções do que fazer a uma mulher em trabalho de parto há três dias, já com sinais de coma e de que, “só agora, a “Mulher-Grande” dera conhecimento”.
Passei o papel ao “Tonecas”. Leu-o, mudou de côr, levantou-se e, compenetrado, disse: “Capitão, preciso de escolta. Há duas vidas em perigo”. O sentido do dever e ajuda ao próximo venciam o medo físico.
Pouco depois roncavam os “Unimogs” e o Silva Pereira, comandante do Grupo de Combate de escolta, pedia-me licença para arrancar. No jeep sanitário o Terrinha (era este o seu nome) e o cabo enfermeiro Vicente com a mochila dos primeiros socorros faziam-se à “picada”. Uma viagem de
Cel. R. Morna do Nascimento
«A foto foi tirada no Lucunga, após a deslocação aqui relatada. Para ampliar, clique na imagem»
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