Em Lucunga, apesar de todos termos ocupações diárias, tinhamos, naturalmente, tempos livres, que eram ocupados de várias maneiras. Ouvia-se rádio, liam-se livros ou jornais que iam chegando, jogava-se futebol ou andebol (menos), conversava-se e, principalmente, jogava-se às cartas.
Os jogos mais populares eram a sueca e a lerpa. Porém, uma minoria jogava o king, a 1 centavo o ponto, com o pretexto de que assim tinha mais interesse.
O king, não sendo um jogo popular, era jogado apenas por meia dúzia de furriéis-milicianos (quatro de cada vez, claro), aos quais se juntava, com assiduidade, o alferes-miliciano médico, dr. Salazar Leite, já que nenhum dos outros oficiais era aficionado deste jogo. Penso mesmo que nenhum deles o sabia jogar.
Um dia, ao chegar para mais uma sessão de jogo, o dr. Leite informou-nos que o comandante de Companhia o tinha chamado para o repreender, ao mesmo tempo que lhe comunicava que, se persistisse naquele comportamento, lhe seria levantado um auto, em consequência do qual “apanharia uma passa”.
Tendo, de certo modo, um estatuto especial na orgânica da companhia – acho que ele próprio não se considerava bem um militar, detestando mesmo que o tratassem pelo posto, preferindo o “dr.” em vez de “alferes” – não se preocupou com a ameaça e continuou a jogar connosco até sairmos de Lucunga, sem que a ameaça se tivesse concretizado.
Porém, o episódio virou divertimento (com algum “gozo” à mistura). De cada vez que se sentava para jogar, dizia: “é desta que vou levar com o auto das passas”! Com o passar do tempo a expressão ganhou vida própria. A propósito (ou a despropósito) de qualquer coisa que parecesse sair das normas, logo algum de nós soltava o que já era um jargão, dirigido ao autor da “argolada”: “Põe-te a pau, se não ainda levas com o auto das passas”!
Carlos Fonseca
CArt 738
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